O que você estava fazendo na tarde de
18 de agosto de 2004?
Nenhum haitiano precisa pensar duas vezes antes de responder. Para eles, foi um dia memorável. Pela primeira vez em seis meses (desde o começo da guerra civil e da intervenção das tropas da ONU no Haiti), a multidão que invadiu as ruas da capital Porto Príncipe não tinha armas nas mãos e os blindados do exército transportavam jogadores de futebol e jornalistas em vez de soldados.
No que ficou conhecido como o Jogo da Paz, a população se mobilizou como nunca para seguir novos líderes rumo ao único estádio da cidade. Lá dentro só havia lugar para 15 mil espectadores; por isso, a seleção brasileira foi levada no alto de tanques de guerra durante todo o percurso. Era a única forma de Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho, Roberto Carlos e cia. serem vistos e saudados pelo maior número possível de fãs, que os seguiam a pé e de bicicleta.
18 de agosto de 2004?
Nenhum haitiano precisa pensar duas vezes antes de responder. Para eles, foi um dia memorável. Pela primeira vez em seis meses (desde o começo da guerra civil e da intervenção das tropas da ONU no Haiti), a multidão que invadiu as ruas da capital Porto Príncipe não tinha armas nas mãos e os blindados do exército transportavam jogadores de futebol e jornalistas em vez de soldados.
No que ficou conhecido como o Jogo da Paz, a população se mobilizou como nunca para seguir novos líderes rumo ao único estádio da cidade. Lá dentro só havia lugar para 15 mil espectadores; por isso, a seleção brasileira foi levada no alto de tanques de guerra durante todo o percurso. Era a única forma de Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho, Roberto Carlos e cia. serem vistos e saudados pelo maior número possível de fãs, que os seguiam a pé e de bicicleta.
O exército brasileiro acabara de chegar ao Haiti liderando a força da paz das Nações Unidas e a idéia de um amistoso entre os dois países fazia parte da estratégia diplomática dos governos. Não se imaginava, porém, uma recepção tão delirante e ao mesmo tempo tão respeitosa. No acanhado estádio Sylvio Cator, sob um calor escaldante que enormes pedras de gelo colocadas nas laterais do gramado tentavam inutilmente amenizar, o público ouviu nosso hino de pé em silêncio solene e depois delirou com as jogadas de nossos craques.
A festa terminou com 6x0 para o Brasil, gols de Ronaldinho Gaúcho (3), Roger (2) e Nilmar. Em nenhum momento o goleiro Júlio César chegou a ser incomodado, apesar de o primeiro-ministro Gerard Latortue ter oferecido mil dólares para quem conseguisse fazer um gol na seleção brasileira – verdadeira fortuna num país com renda per capta de menos de um dólar por dia.
A chance de algum jogador da seleção do Haiti levar aquele prêmio era na verdade quase nula. Quase tão impossível quanto receber em casa os campeões do mundo e ver ao vivo Ronaldinho marcar um golaço depois de driblar quatro adversários mais o goleiro. Dois milagres num dia só, convenhamos, seria esperar demais.
A festa terminou com 6x0 para o Brasil, gols de Ronaldinho Gaúcho (3), Roger (2) e Nilmar. Em nenhum momento o goleiro Júlio César chegou a ser incomodado, apesar de o primeiro-ministro Gerard Latortue ter oferecido mil dólares para quem conseguisse fazer um gol na seleção brasileira – verdadeira fortuna num país com renda per capta de menos de um dólar por dia.
A chance de algum jogador da seleção do Haiti levar aquele prêmio era na verdade quase nula. Quase tão impossível quanto receber em casa os campeões do mundo e ver ao vivo Ronaldinho marcar um golaço depois de driblar quatro adversários mais o goleiro. Dois milagres num dia só, convenhamos, seria esperar demais.
O que não deveria surpreender é o poder do futebol – em particular, do nosso futebol – de desarmar inimigos, mesmo que por apenas seis dias. Pelé e o Santos que o digam. Em 1969, as hostilidades entre Brazzaville e Kinshasa, as duas maiores cidades do ex-Congo Belga, foram suspensas para que o time paulista pudesse cumprir compromissos assumidos antes de o país se envolver numa guerra civil.
Numa operação parecida com filme de espionagem, soldados de Kinshasa escoltaram a delegação até a metade do rio Congo, que separa as cidades, onde foi entregue aos soldados inimigos e levada ao estádio de Brazzaville. No amistoso que se seguiu, em 19 de janeiro, Pelé marcou os gols 938 e 939 da carreira e a seleção congolesa encheu-se de orgulho porque perdeu por apenas 3x2. Honra que o povo de Kinshasa também reivindicou.
Os santistas foram informados de que só teriam autorização para deixar a região depois de jogar com a seleção B do país. Como o resultado de 2x0 para os brasileiros deixava os adversários de Brazzaville em vantagem, nova partida foi marcada, desta vez contra o time Leopardos, que ganhou por 3x2 (mais dois gols de Pelé). Com festa e homenagens, o Santos partiu no dia 24 de janeiro... e o cessar-fogo acabou.
Numa operação parecida com filme de espionagem, soldados de Kinshasa escoltaram a delegação até a metade do rio Congo, que separa as cidades, onde foi entregue aos soldados inimigos e levada ao estádio de Brazzaville. No amistoso que se seguiu, em 19 de janeiro, Pelé marcou os gols 938 e 939 da carreira e a seleção congolesa encheu-se de orgulho porque perdeu por apenas 3x2. Honra que o povo de Kinshasa também reivindicou.
Os santistas foram informados de que só teriam autorização para deixar a região depois de jogar com a seleção B do país. Como o resultado de 2x0 para os brasileiros deixava os adversários de Brazzaville em vantagem, nova partida foi marcada, desta vez contra o time Leopardos, que ganhou por 3x2 (mais dois gols de Pelé). Com festa e homenagens, o Santos partiu no dia 24 de janeiro... e o cessar-fogo acabou.
A paixão pelo futebol e por um craque já põs fim a uma guerra sangrenta. Aconteceu em março de 2007, durante as eliminatórias da Taça das Nações Africanas. A Costa do Marfim jogaria em casa contra Madagascar, mas na época “casa” era um conceito um tanto abstrato, pois havia cinco anos o país estava dividido entre o norte rebelde, pobre e de origem islâmica e o sul rico, católico e sede do governo. Ídolo da seleção marfinense e do Liverpool da Inglaterra, Didier Drogba fez o que sabe fazer de melhor: partiu para o ataque. Só que desta vez, contra a insanidade de seus compatriotas.
Exigiu que o jogo fosse disputado na cidade de Bouaké, conhecida como a capital da rebelião, o que só seria possível com uma trégua nos combates. Nas arquibancadas, os incrédulos 25 mil torcedores, muitos deles soldados do governo que até então lutavam para conquistar a cidade à bala, viram o líder guerrilheiro (e futuro primeiro-ministro) Guillaume Kigbafori Soro na tribuna de honra ao lado do presidente Laurent Koudou Gbagbo; cantaram juntos o hino que era de todos; aplaudiram a goleada de 5x0; e saíram do estádio convencidos de que estavam “curados do mal da guerra”, como declarou o oficial do exército Christophe Diecket, em entrevista à revista Vanity Fair.
Exigiu que o jogo fosse disputado na cidade de Bouaké, conhecida como a capital da rebelião, o que só seria possível com uma trégua nos combates. Nas arquibancadas, os incrédulos 25 mil torcedores, muitos deles soldados do governo que até então lutavam para conquistar a cidade à bala, viram o líder guerrilheiro (e futuro primeiro-ministro) Guillaume Kigbafori Soro na tribuna de honra ao lado do presidente Laurent Koudou Gbagbo; cantaram juntos o hino que era de todos; aplaudiram a goleada de 5x0; e saíram do estádio convencidos de que estavam “curados do mal da guerra”, como declarou o oficial do exército Christophe Diecket, em entrevista à revista Vanity Fair.
Mas o mais extraordinário caso de inimigos que trocaram as armas por uma bola está próximo de completar 100 anos e até virou filme. Conhecido como A Trégua do Natal de 1914, o gramado foi um campo de batalha da Primeira Guerra Mundial, a terra de ninguém ao sul de Ypres, na Bélgica, entre as tricheiras cavadas por ingleses e franceses de um lado e alemães do outro.
A confraternização começou com as mesmas canções cantadas em coro em três idiomas, continuou com a promessa gritada na noite escura (“Vocês não atiram em nós, nós não atiramos em vocês!”), virou festa com a troca de cigarros, bebidas, histórias dos tempos de paz e até endereços, culminou na manhã de 26 de dezembro com um jogo de futebol entre o regimento inglês de Bedfordshire e
as tropas alemãs.
Relatos de testemunhas em diários e cartas para a família falam de um espetáculo grandioso, cada time com 60 jogadores. A vitória teria sido da Alemanha por 3x2 e sabe-se lá quantos outros gols poderiam ter acontecido naquele amistoso se a bola (que ninguém lembrava de onde surgiu) não acabasse furada por um emaranhado de arame farpado.
Os adversários daquele jogo não se enfrentariam novamente. De volta às trincheiras, passaram a atirar acima das posições inimigas, desperdiçando munição e obrigando o alto comando a mandá-los para outros campos de batalha. Para evitar a repetição do “problema”, a estratégia dos dois exércitos foi intensificar os bombardeios nos Natais de 1915, 1916 e 1917.
Para que o episódio nunca seja esquecido, desde 1999 um monumento marca o lugar onde soldados em guerra se permitiram fazer o que amigos fazem num feriado: beberam, riram e jogaram uma pelada.
A confraternização começou com as mesmas canções cantadas em coro em três idiomas, continuou com a promessa gritada na noite escura (“Vocês não atiram em nós, nós não atiramos em vocês!”), virou festa com a troca de cigarros, bebidas, histórias dos tempos de paz e até endereços, culminou na manhã de 26 de dezembro com um jogo de futebol entre o regimento inglês de Bedfordshire e
as tropas alemãs.
Relatos de testemunhas em diários e cartas para a família falam de um espetáculo grandioso, cada time com 60 jogadores. A vitória teria sido da Alemanha por 3x2 e sabe-se lá quantos outros gols poderiam ter acontecido naquele amistoso se a bola (que ninguém lembrava de onde surgiu) não acabasse furada por um emaranhado de arame farpado.
Os adversários daquele jogo não se enfrentariam novamente. De volta às trincheiras, passaram a atirar acima das posições inimigas, desperdiçando munição e obrigando o alto comando a mandá-los para outros campos de batalha. Para evitar a repetição do “problema”, a estratégia dos dois exércitos foi intensificar os bombardeios nos Natais de 1915, 1916 e 1917.
Para que o episódio nunca seja esquecido, desde 1999 um monumento marca o lugar onde soldados em guerra se permitiram fazer o que amigos fazem num feriado: beberam, riram e jogaram uma pelada.