No começo, você ganha a fama de intrometida e meio doida. Mas isso passa. Ou não.
A bem da verdade devo esclarecer que, com o tempo, não digo que você se acostume, mas passe a compreender e antecipar o raciocínio peculiar do pessoal. No fundo, não é muito diferente do que aconteceu com o então presidente Sarney em Lisboa, lembra? De passagem por uma livraria famosa, pensou em voltar com mais calma no sábado e perguntou ao proprietário: “Vocês fecham aos sábados?”. Soube então que “aos sábados não fechamos, Excelência, porque não abrimos”.
Dentre as coisas que hoje já me parecem cristalinas, uma das mais importantes é a seguinte: não basta dar uma ordem, ela tem de parecer uma ordem. Comentários do tipo “seu Rosalvo, precisa cortar de novo o mato no meio da estrada, senão daqui a pouco o carro não consegue passar”, não demonstram (como você imagina) que é para seu Rosalvo ir imediatamente pegar uma foice e dar fim ao maldito mato. Não mesmo. Para ele, significa que você, que vive xeretando tudo e adora inventar uma moda, resolveu implicar agora com um matinho que sempre esteve lá e não faz mal a ninguém.
Contribuem também para o mau entendimento de uma ordem o uso de expressões vagas como esse “daqui a pouco o carro não consegue passar”. Já que o carro ainda está passando, deixa-se o corte para quando ele efetivamente não conseguir passar. Tem sua lógica, não podemos negar.
É preciso não perder de vista que
a maioria esmagadora das suas prioridades jamais fez parte da vida do pessoal
que trabalha no sítio. Seu Rosalvo passou 58 anos indo e vindo da cidade a pé (10 quilômetros ida e volta);
não se pode imaginar que a essa altura do campeonato enxergará no tal mato algo
além de um bom lugar pra pisar quando a estrada estiver que é pura lama .
Outro fato da vida na roça: você é uma alienígena em sua própria casa. Porque pensa, fala e quer coisas que não têm nada a ver com o mundo à sua volta. Todos têm idéias muito claras e pétreas a respeito de gente da cidade, que podem ser reduzidas a duas: são cheios de frescura e de grana. Ando esmolambenta com camisetas que já eram velhas há dez anos. Ainda assim, tudo aumentava de preço quando o comerciante percebia que era aqui para a magnata. |
Mercado de Peixes, de Carybé.
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Na realidade, não se pode culpá-los sem direito a perdão; até alguns amigos e conhecidos nos olharam com cara de “qual será o golpe que eles deram?” ao saber que íamos morar no sítio. Sem falsa modéstia, menejo um enxadão feito gente grande e sou a colhedora de milho e feijão mais rápida do oeste. Porém, não tem jeito; o pessoal me considera, no máximo, no máximo, boa gente, mas meio doida. |
A história dos peixes é exemplo claríssimo da idéia preconcebida que fazem do nosso status social. O sítio fica relativamente perto de Parati – se você for, aí sim, bastante doido para descer quase oito quilômetros (que parecem 80) de uma estrada de terra que é verdadeira pirambeira. Só nos metemos nessa aventura uma vez, pra nunca mais. Permanece o fato, no entanto, de que é perto.
Você não acharia estranhíssimo se na cidade não houvesse uma única peixaria para contar a história? Nós também. Nos trinta e tantos anos que temos o sítio, cansamos de perguntar ao caseiro, família e agregados, e a resposta sempre foi: peixaria não tem, tem um sujeito que cria trutas. Maravilha, amo trutas de paixão. Mas, com aquele marzão todo praticamente ali, vamos comer só peixe de rio?
Cerca de um mês depois de estarmos definitivamente (espero) instalados, eis que ouço, por acaso, a filha mais velha do caseiro avisar pra mãe que “o Jessé tá aí, a senhora vai querer sardinha?”. Como?! Onde, quem? Pois bem: o abençoado Jessé é antiquíssimo comerciante local que não só tem uma peixaria, como ainda vai uma vez por semana oferecer sua mercadoria em vários sítios e fazendas e aceita encomendas pelo telefone – minto, telefones, pois pode ser contatado a qualquer hora do dia ou da noite pelo celular.
Fiquei perplexa e os empregados mais ainda, quando saí feito louca, voando as tranças, atrás desse bom homem. Depois de encher um cesto com sardinhas, pescadinhas, sororocas (e até uns camarões de bom tamanho, fresquíssimos, que custaram um terço da fortuna que custam os miúdos congelados em São Paulo), dei vazão ao ressentimento: “Mas, minha gente, nós doidos por um peixe e vocês dizendo que não tinha...”
A resposta deixou claro de que se trata o tal de choque cultural: “Nunca que nóis pensemo que a senhora ia querer isso”. E percebi uma ponta de decepção e preocupação no comentário – afinal de contas, a patroa ou não possuía o paladar refinado que imaginavam ou tinha endoidado de vez. Ou as duas coisas.
A resposta deixou claro de que se trata o tal de choque cultural: “Nunca que nóis pensemo que a senhora ia querer isso”. E percebi uma ponta de decepção e preocupação no comentário – afinal de contas, a patroa ou não possuía o paladar refinado que imaginavam ou tinha endoidado de vez. Ou as duas coisas.
Da mesma forma que acreditavam
ser Jessé pouca areia para o meu caminhãozinho, levam o maior susto quando
aprecio suas habilidades manuais – as quais, como no caso dos peixes, a gente
só descobre por meríssimo acaso. Estava eu xeretan..., isto é, dando uma geral
no terreiro junto à casa do caseiro, quando vejo mato viçoso de pontas
coloridas. “Que que é isso?”. “É taboa, o pessoal daqui usa pra fazê esteira”,
informa a Maria, competente prestadora de serviços temporários que está virando
tão permanente quanto a farra com o dinheiro do contribuinte.
“Tem dessas esteiras na Casa do Artesão?” (espécie de cooperativa dos talentos locais que, para meu dissabor, sempre está fechada quando vou lá, não importa qual seja o dia do mês ou da semana) “Não sei, não senhora, mas o Chico faz.” “Qual Chico? O seu Chico?!” Era. Não só faz, como o marido da Maria é mestre na arte de tecer as tais fibras. E o irmão dela transforma bambu e cipó em cestos fantásticos – coisa que também só fiquei sabendo depois de comprar algumas peças na feirinha de artesanato da cidade e ouvir o comentário: “Nossa, a senhora acha isso bonito? O Aílton faz aos monte pra guardá as espiga de milho”.
Portanto, é bom ter em mente que jamais receberá informações preciosas (do seu ponto de vista), a menos que faça como eles: pergunte, pergunte exaustivamente e das formas mais variadas possíveis. Jamais generalize. Peixe, como se viu, é conceito amplo demais. Exemplifique; de preferência, como se costuma dizer, nivelando por baixo. Se eu tivesse desde a primeira vez me referido a sardinhas, meu relacionamento com Jessé estaria completando bodas de pérola.
É mais do que aconselhável também demonstrar que não está mesmo nadando em dinheiro. Uma maneira eficaz (e digo por experiência própria): sempre que for à cidade fazer compras, pare antes naquelas lojinhas que insistem em dizer que são de R$ 1,99. O pior que pode acontecer é ficar com fama de unha-de-fome. O que, no caso em questão, não tem preço.
“Tem dessas esteiras na Casa do Artesão?” (espécie de cooperativa dos talentos locais que, para meu dissabor, sempre está fechada quando vou lá, não importa qual seja o dia do mês ou da semana) “Não sei, não senhora, mas o Chico faz.” “Qual Chico? O seu Chico?!” Era. Não só faz, como o marido da Maria é mestre na arte de tecer as tais fibras. E o irmão dela transforma bambu e cipó em cestos fantásticos – coisa que também só fiquei sabendo depois de comprar algumas peças na feirinha de artesanato da cidade e ouvir o comentário: “Nossa, a senhora acha isso bonito? O Aílton faz aos monte pra guardá as espiga de milho”.
Portanto, é bom ter em mente que jamais receberá informações preciosas (do seu ponto de vista), a menos que faça como eles: pergunte, pergunte exaustivamente e das formas mais variadas possíveis. Jamais generalize. Peixe, como se viu, é conceito amplo demais. Exemplifique; de preferência, como se costuma dizer, nivelando por baixo. Se eu tivesse desde a primeira vez me referido a sardinhas, meu relacionamento com Jessé estaria completando bodas de pérola.
É mais do que aconselhável também demonstrar que não está mesmo nadando em dinheiro. Uma maneira eficaz (e digo por experiência própria): sempre que for à cidade fazer compras, pare antes naquelas lojinhas que insistem em dizer que são de R$ 1,99. O pior que pode acontecer é ficar com fama de unha-de-fome. O que, no caso em questão, não tem preço.