Como boa geminiana que adora viajar e fazer mil coisas ao mesmo tempo, há uns 10 anos resolvi ter uma agência de turismo. Os clientes ficavam encantados (alguns, até meio intimidados) ao saber que eu era jornalista. Talvez por isso, minha experiência tenha sido menos estressante do que a da maioria dos agentes. Quando percebia que um passageiro ia puxar aquela conversa do “estou pagando, quero o impossível”, tirava da gaveta esse artigo que escrevi para a revista Viaje Bem. Geralmente o candidato a chato caía na real e desencanava.
O MELHOR DA FESTA
NÃO ESTAVA
NO PROGRAMA
Miriam grudou em mim os olhinhos de nissei, mais apertados ainda de pura aflição: queria porque queria, em papel timbrado e com firma reconhecida, uma garantia de que nada, nadinha, ia dar errado na viagem à Grécia.
“Dar errado”, para ela, significava sair um milímetro sequer do programado.
Nenhum agente de viagem, em sã consciência, pode jurar de pés juntos (muito menos, assinar embaixo) que não acontecerá nenhum imprevisto -- até porque, imprevistos têm o feio hábito de acontecer quando a gente menos espera. Em compensação, não são necessariamente um transtorno; menos ainda, uma tragédia.
Algumas de minhas melhores -- e mais divertidas -- recordações de viagem têm tudo a ver com o que não estava no programa.Os olhinhos orientais aliviaram a tensão quando eu disse isso, mas o brilho desconfiado continuava lá: “É mesmo? Por exemplo?”.
Por exemplo, meu organizadíssimo tour na Alemanha. Deveríamos ir de Heidelberg a Lindau (às margens do lago Constanza) atravessando a Floresta Negra. O roteiro era muito claro: “visita panorâmica”. Quer dizer, sem paradas. Isto, se não tivesse caído um temporal de proporções bíblicas que nos levou em desabalada carreira para o Berg Hotel Mummelsee, abrigo providencial surgido em meio à tormenta.
Não havendo passeios nem compras à vista, o que faz o turista esperto? Come. E a casa oferecia uma especialidade: Schwazwälder Kirschtorte, uma divina torta feita com creme de cerejas e chocolate, coberta com levíssimo chantilly salpicado de cerejas reluzentes.
Jamais provei algo parecido em lugar algum, nem mesmo na própria Alemanha. E jamais teria provado, não fosse o “terrível contratempo” do temporal. Na época (setembro de 1990), uma generosa porção daquela inesperada felicidade custou apenas 3,70DM (pouco mais de dois dólares).
“Dar errado”, para ela, significava sair um milímetro sequer do programado.
Nenhum agente de viagem, em sã consciência, pode jurar de pés juntos (muito menos, assinar embaixo) que não acontecerá nenhum imprevisto -- até porque, imprevistos têm o feio hábito de acontecer quando a gente menos espera. Em compensação, não são necessariamente um transtorno; menos ainda, uma tragédia.
Algumas de minhas melhores -- e mais divertidas -- recordações de viagem têm tudo a ver com o que não estava no programa.Os olhinhos orientais aliviaram a tensão quando eu disse isso, mas o brilho desconfiado continuava lá: “É mesmo? Por exemplo?”.
Por exemplo, meu organizadíssimo tour na Alemanha. Deveríamos ir de Heidelberg a Lindau (às margens do lago Constanza) atravessando a Floresta Negra. O roteiro era muito claro: “visita panorâmica”. Quer dizer, sem paradas. Isto, se não tivesse caído um temporal de proporções bíblicas que nos levou em desabalada carreira para o Berg Hotel Mummelsee, abrigo providencial surgido em meio à tormenta.
Não havendo passeios nem compras à vista, o que faz o turista esperto? Come. E a casa oferecia uma especialidade: Schwazwälder Kirschtorte, uma divina torta feita com creme de cerejas e chocolate, coberta com levíssimo chantilly salpicado de cerejas reluzentes.
Jamais provei algo parecido em lugar algum, nem mesmo na própria Alemanha. E jamais teria provado, não fosse o “terrível contratempo” do temporal. Na época (setembro de 1990), uma generosa porção daquela inesperada felicidade custou apenas 3,70DM (pouco mais de dois dólares).
Imprevistos têm outra fascinante característica: nem sempre são o que parecem ser -- e vice-versa. Apesar de o atraso de aviões na Índia não representar exatamente uma novidade, nosso vôo de Ajanta para Udaipur bateu todos os recordes: três horas e meia de espera por uma viagem de cerca de 45 minutos. Resultado: remanejamento de hotéis, pois o previsto ficava distante demais.
A notícia deixou todo mundo (éramos 11 mulheres) num mau-humor de cão, embora ninguém fizesse a mais remota idéia de como seriam o hotel “perdido” ou o agora “impingido”. A tendência de todo turista “normal”, porém, é acreditar que qualquer troca será inevitavelmente para pior. E lá fomos nós, num silêncio rancoroso, para o que só poderia ser um pardieiro.
A surpresa ao chegar me fez cometer o imperdoável pecado de lesa-majestade de não anotar o nome daquele deslumbramento: tratava-se de um antigo palácio, decoração suntuosa, apartamentos imensos com varandões para o lago em frente, que tinha até uma charmosa ilhota no meio. Enfim, a perfeição.
Pelo menos, até duas curiosas do grupo descobrirem que a chave do quarto delas abria a porta de todos os outros quartos. Daí em diante, o cenário exótico ganhou tons sinistros. Ainda mais porque, justo naquela noite, o único canal de televisão que pegava feito um cinema teve o mau gosto de passar Psicose.
No café da manhã, o mulherio confessou que ver aquele filme naquele hotel tirou o sono de todo mundo.
E ninguém acreditou quando contei que, por causa do ventilador no teto -- que deslocava mais ar do que um helicóptero de combate e não podia ser desligado --, saí rebocando colchão e travesseiro pelas dezenas de metros quadrados do apartamento, até encontrar refúgio no único lugar a salvo da ventania: eu tinha dormido (aliás, muito bem)... dentro do box.
A notícia deixou todo mundo (éramos 11 mulheres) num mau-humor de cão, embora ninguém fizesse a mais remota idéia de como seriam o hotel “perdido” ou o agora “impingido”. A tendência de todo turista “normal”, porém, é acreditar que qualquer troca será inevitavelmente para pior. E lá fomos nós, num silêncio rancoroso, para o que só poderia ser um pardieiro.
A surpresa ao chegar me fez cometer o imperdoável pecado de lesa-majestade de não anotar o nome daquele deslumbramento: tratava-se de um antigo palácio, decoração suntuosa, apartamentos imensos com varandões para o lago em frente, que tinha até uma charmosa ilhota no meio. Enfim, a perfeição.
Pelo menos, até duas curiosas do grupo descobrirem que a chave do quarto delas abria a porta de todos os outros quartos. Daí em diante, o cenário exótico ganhou tons sinistros. Ainda mais porque, justo naquela noite, o único canal de televisão que pegava feito um cinema teve o mau gosto de passar Psicose.
No café da manhã, o mulherio confessou que ver aquele filme naquele hotel tirou o sono de todo mundo.
E ninguém acreditou quando contei que, por causa do ventilador no teto -- que deslocava mais ar do que um helicóptero de combate e não podia ser desligado --, saí rebocando colchão e travesseiro pelas dezenas de metros quadrados do apartamento, até encontrar refúgio no único lugar a salvo da ventania: eu tinha dormido (aliás, muito bem)... dentro do box.
Às vezes, o imprevisto é tão pessoal e intransferível que transforma a gente numa espécie de “tipo inesquecível” do grupo. Se alguém me perguntar qual foi o melhor vôo que já fiz, não preciso pensar, só consultar algumas anotações:
foi a bordo de um Tupolev 154, entre Leningrado e Duschambe, numa sexta-feira de meados de
setembro de 1987.
De tão impecável, os passageiros de vez em quando aplaudiam o piloto -- ainda mais porque se tratava de um avião de transporte de tropas adaptado. A aterrissagem (seda sobre veludo) provocou verdadeiro delírio. Para mim,
porém, esse vôo tornou-se inesquecível mesmo por uma curiosidade gastronômica -- se é que posso chamar assim.
Servido o almoço, todos receberam frango. Todos, menos eu. O quitute que jazia na minha quentinha (é bom lembrar que estou falando de um vôo da Aeroflot soviética, nada chegada a nenhum tipo de sofisticação)... o quitute, dizia eu, permaneceu incólume, apesar de atacado por todos os lados a ferozes golpes de faca. Não consegui sequer arranhar a superfície daquilo. Nem resistir ao desabafo: “Gente, isso não é frango. Com essa musculatura, só pode ser um pombo correio. E me deram logo a asa!”
A bem da verdade, o arroz (que era pouco) estava soltinho e o molho da misteriosa ave, até bem temperado. Mas deliciosa mesmo foi a solidariedade dos companheiros de viagem: depois dos 15 minutos regulamentares de gozação, os mais próximos fizeram uma “vaquinha”, abdicando cada um de um pedacinho de seu almoço para que eu não morresse de fome em pleno espaço aéreo da Ásia Central.
Com bastante freqüência, são justamente coisas assim -- que não estavam no programa -- que dão sabor a uma viagem. Impossível evitar. E será desejável?
Acho que Miriam pegou o espírito da coisa. Perdeu pelo menos aquele olhar de quem tinha medo de ser feliz, embarcou para a Grécia(levando, é verdade, até o telefone lá de casa, porque a gente nunca sabe...) e na volta me ligou para dizer que tudo tinha dado certíssimo.
Não sei se feliz ou infelizmente, nenhum imprevisto aconteceu com ela.
foi a bordo de um Tupolev 154, entre Leningrado e Duschambe, numa sexta-feira de meados de
setembro de 1987.
De tão impecável, os passageiros de vez em quando aplaudiam o piloto -- ainda mais porque se tratava de um avião de transporte de tropas adaptado. A aterrissagem (seda sobre veludo) provocou verdadeiro delírio. Para mim,
porém, esse vôo tornou-se inesquecível mesmo por uma curiosidade gastronômica -- se é que posso chamar assim.
Servido o almoço, todos receberam frango. Todos, menos eu. O quitute que jazia na minha quentinha (é bom lembrar que estou falando de um vôo da Aeroflot soviética, nada chegada a nenhum tipo de sofisticação)... o quitute, dizia eu, permaneceu incólume, apesar de atacado por todos os lados a ferozes golpes de faca. Não consegui sequer arranhar a superfície daquilo. Nem resistir ao desabafo: “Gente, isso não é frango. Com essa musculatura, só pode ser um pombo correio. E me deram logo a asa!”
A bem da verdade, o arroz (que era pouco) estava soltinho e o molho da misteriosa ave, até bem temperado. Mas deliciosa mesmo foi a solidariedade dos companheiros de viagem: depois dos 15 minutos regulamentares de gozação, os mais próximos fizeram uma “vaquinha”, abdicando cada um de um pedacinho de seu almoço para que eu não morresse de fome em pleno espaço aéreo da Ásia Central.
Com bastante freqüência, são justamente coisas assim -- que não estavam no programa -- que dão sabor a uma viagem. Impossível evitar. E será desejável?
Acho que Miriam pegou o espírito da coisa. Perdeu pelo menos aquele olhar de quem tinha medo de ser feliz, embarcou para a Grécia(levando, é verdade, até o telefone lá de casa, porque a gente nunca sabe...) e na volta me ligou para dizer que tudo tinha dado certíssimo.
Não sei se feliz ou infelizmente, nenhum imprevisto aconteceu com ela.